Madalena entra em casa e dirige-se à cozinha, onde já estão todos sentados e preparados para comer.
José
Então? Tanto tempo e nem umas pizzas trazes para te desculpares?
Madalena não responde. Apenas sorri, senta-se e começa a servir-se.
Maria
Então? O que se passou?
Nada de especial. Depois falamos. Agora vamos mas é comer. Contem-me mas é o que fizeram, enquanto estive fora. Já montaram toda a iluminação?
Sem ninguém a dar-nos choques, foi rápido.
E pelo que vejo não ficaste com mais dedos feridos, pelo que deve ter sido o Tomás a fazer o trabalho todo, certo? – diz, sorrindo, a José.
Onde é que foste tia?
Fui dar uma volta para conhecer melhor a terra e ver se existiam rapazes jeitosos. – diz a sorrir. – Estes legumes estão deliciosos. – diz, tentando acabar com a conversa sobre a sua saída – Maria, tu cada vez cozinhas melhor!
Por acaso esses legumes, foi o Tomás que fez.
A sério?! Afinal até és um rapaz jeitoso. – diz, arrependo-se logo de seguida devido ao segundo sentido que a frase poderia ter.
Obrigado. Tu também não és má de todo. Embora continues a usar o mesmo fato de treino de ontem.
Madalena fica vermelha e envia um pedaço de pão a Tomás. Todos se riem com a atrapalhação de Madalena. O almoço prossegue animado, com conversas triviais sobre a distribuição das tarefas para a tarde e uma explicação de Tomás, sobre os efeitos positivos que certos legumes têm, no equilíbrio do Karma.
Dentro de Madalena uma estranha paz a invade. Sente uma força interior que já não sentia há muito tempo. Afinal, a opção de viver uns tempos com o irmão, talvez tenha sido a melhor opção que tomou na vida.
Madalena senta-se na ponta da cama. Alice olha para a parede e encolhe-se, de forma a não tocar em Madalena. Madalena fica à espera que a música acabe enquanto vai olhando para Alice. Vê, no rosto de Alice, a marca que lágrimas recentes deixaram. Vê raiva e desespero nos seus olhos. Mas Madalena, não está preocupada. Sente-se calma...serena. Algo que ela própria acha estranho. Sorri para Alice, agora que sente que a canção está a terminar, e prepara-se para começar a falar, mas antes que o silêncio invada o quarto, Alice preme um botão do seu leitor de MP3 e avança para a próxima música. Mais uma vez, o som de música entra, com o seu volume máximo, dentro da cabeça de Alice. Mas mesmo assim não a impede de pensar. Pensar nas razões que estão por detrás de Madalena estar ali sentada, na sua cama. Por que é que ela não se vai embora? Alice apenas quer estar sozinha, não quer falar. Apetece-lhe dizer que nunca mais vai voltar a casa deles. Que podem estar descansados. Mas sabe que se o fizer, mais lágrimas vão cair, e isso ela não vai deixar acontecer. Madalena não a vai ver a chorar, isso é mais do que certo! Alice já há muito que aprendeu a reter as lágrimas, sempre que não está sozinha.
Madalena toca na perna de Alice, tentando desta forma, que ela desligue a música e a ouça. Alice encolhe-se ainda mais e vira-se totalmente para a parede. Madalena não insiste. Levanta-se, dirige-se à mesa do quarto, agarra num pedaço de papel e num lápis e começa a rabiscar qualquer coisa. Quando termina, dirige-se a Alice e dá-lhe um suave beijo na cabeça. Depois saí do quarto e da casa.
Alice não esperava uma reacção daquelas. Um beijo! Porquê? A música continua a ecoar forte na sua cabeça, mas não suficientemente forte para evitar que uma série de emoções invadam a sua cabeça. Alice desiste. Liberta o doloroso nó que lhe aperta o pescoço e chora. Chora compulsivamente. Não são apenas lágrimas que saem do seu corpo. Há raiva e desespero nos gritos abafados que vêm com o choro. Imagens aleatórias vão surgindo na sua cabeça. Alice coloca ambas as mãos nos ouvidos pressionando-os, tentando assim que a música aumente ainda mais e a faça esquecer tudo, mas nada consegue parar o seu choro, as suas lágrimas, a raiva e o seu desespero...
Finalmente, passados inúmeros minutos, começa a acalmar, coloca-se em posição fetal e, esgotada, acaba por adormecer.
Alice sai da casa de Mariana, comendo uma sandes, e imediatamente se apercebe da presença de Madalena, sentada no meio das velhas. Madalena levanta-se de imediato. Alice dirige-se a Madalena...”Como é que ela se atreveu a segui-la?!” Como a Odeia!
Alice
O que está aqui a fazer? – pergunta irritada.
Velha1
Eu não lhe disse q’esta moça é só fezes?
Madalena fica sem reacção. Alice sente os olhos a encherem-se de lágrimas de raiva, mas não lhe vai dar essa satisfação. Volta-se, e dirige-se para uma das casas, na qual entra. As velhas continuam a falar com Madalena, mas esta não as ouve. Segue em direcção à casa onde Alice entrou, mas dá com a porta fechada. Hesita uns segundos, mas acaba por bater. Nada acontece. Volta a insistir. Finalmente a porta abre-se, e Madalena dá de caras com uma mulher. Uma mulher cuja idade, Madalena, tem dificuldade em detectar. Tem na cara duas enormes covas, no fundo das quais se vêem uns olhos, que lutam para se manterem abertos perante uma luz, à qual, parece que não estão habituados. Tem uns cabelos, que deveriam ser lisos, e que se entrelaçam ao acaso, numa mescla de cabelos brancos e pretos.
Eva
O que deseja? – diz, arrastando a voz
Madalena não consegue evitar uma careta, perante o intenso cheiro a álcool, que sai com as palavras.
Madalena
Peço desculpas. Provavelmente acordei-a. Gostaria de falar com a Alice, se fosse possível.
Assim que Madalena acaba de falar, Eva volta-se, deixando a porta aberta. Segue cambaleando, para uma divisão da pequena casa, na qual, Madalena vislumbra algo que lhe parece uma cama, onde já se encontra deitado uma outra figura. Antes de cair na cama, Eva fecha a porta do quarto, deixando Madalena sozinha, à entrada da casa.
Madalena sente-se num mundo que não lhe é estranho... Um mundo que conhece bem! Só nunca tinha estado, fisicamente, tão dentro dele! Até então, este mundo existia apenas nas histórias de vida, que ouvia dos seus doentes, como Psicóloga do Centro de Saúde Mental dos Hospitais, no de Lisboa e agora no de Beja.
Começa a entrar pela casa, a qual emane um forte cheiro a álcool.
Para além da pequena sala, existe uma cozinha, o quarto onde Eva entrou, e mais duas divisões. Uma será certamente, a casa de banho, a outra, o quarto de Alice. Existe ainda uma outra porta, por onde entra claridade pelas frestas, que dá de certeza, para um pequeno jardim.
Ao olhar para todos os cantos daquela casa, Madalena não consegue deixar de sentir, que ali, há algo de estranho. Existem algumas garrafas de cerveja espelhadas, em cima da mesa da cozinha, mas, tirando isso, tudo parece estar demasiado arrumado! Não era esta a imagem que tinha, de uma casa de toxicodependentes!
O cheiro intenso a álcool vem principalmente, ou exclusivamente, do quarto onde Eva entrou.
Madalena ouve, vindo de umas das divisões desconhecidas, um ligeiro e contínuo ruído. Resolve arriscar e bater levemente na porta.
Madalena
Alice? Posso? – pergunta, baixinho.
Não recebe nenhuma resposta. Volta a insistir, mas mais uma vez, apenas o silêncio. Começa então a abrir, muito devagar, a maçaneta da porta, enquanto vai espreitando. Vê Alice sentada em cima de uma pequena cama, com uns "headphones" nos ouvidos. Tem a música tão alta, que Madalena, agora dentro do quarto, consegue ouvi-la.
Alice finge não a ver. Madalena olha em seu redor. Um quarto com tudo pequeno: a cama, o roupeiro, a mesa, o espelho. Nas paredes não há posters de estrelas da televisão, cinema, ou da música. Há sim imagens, tiradas de revistas, que mostram paisagens e sobretudo animais. Madalena repara no forma perfeita, de como tudo se encontra arrumado. Alice não é, sem dúvida, uma adolescente normal.
Perto da hora de Almoço:
Alice sai do quarto de Joana e dá de caras, no corredor, com Madalena. Madalena corta o caminho de Alice.
Então Alice. Está tudo bem contigo?
Sim. - diz, sem vontade de prolongar a conversa.
É que ontem preocupaste o pessoal. De certeza que está tudo bem?
Sim. Está. - diz, olhando Madalena de frente.
Nós ainda não nos conhecemos bem, mas por estranho que pareça, por vezes é com desconhecidos que nos sentimos melhor a falar.
Não tenho nada para falar. Já disse que está tudo bem.
A tua reacção de ontem não me mostrou isso. Algo se passa contigo.
Não se passa nada. Eu não preciso de ser levada a casa, como se fosse uma criança. Já tenho quase 14 anos. Sei cuidar muito bem de mim e não preciso da ajuda de ninguém. - diz, com um olhar de raiva.
Está bem. Pronto. Não precisas de mostrar todo o teu mau feitio. - diz calmamente e a sorrir – Só ficámos preocupados com a tua reacção, nada mais.
Não têm que ficar preocupados. Só não gosto que me tratem como uma criança. Só isso. - diz, mais calma.
Ok. Vai lá então brincar com as bonecas. - diz, com um sorriso.
Eu não brinco com as bonecas. Eu brinco com a Joana que é a única pessoa que não me faz perguntas sobre coisas que não entende, nem nunca vão entender. - diz, mostrando a Madalena ter percebido a ironia da sua frase.
Está bem. E quando é que nos voltamos a ver?
Na sala, Maria está a arrumar livros nas estantes, enquanto Tomás e José estão em cima de um escadote, a colocar um candeeiro no tecto. Entra Madalena
Que ninguém toque no interruptor da luz, por favor. - diz, enquanto vai mexendo nos fios eléctricos.
Estive a falar com a Alice. Acho-a um pouco instável. - diz, sem destinatário definido.
A Joana já lhe deve ter falado da tua depressão, por isso ela deve pensar o mesmo de ti. Estão quites! - diz, desprezando a preocupação de Madalena.
Estou a falar a sério. Afinal é algo que eu conheço bem...
Eu não acho que tu sejas assim tããoo instável. - diz, descendo do escadote e aproximando-se de Madalena.
Claro que não sou. - diz, começando a mostrar alguma irritação – O que eu quero dizer é que isso é algo da minha área.
É verdade. Ela esteve muito tempo em instituições de saúde mental. - diz, para Tomás.
Bom. Isso explica muita coisa. Mas tens a minha total compreensão. Para mim as pessoas não têm rótulos. Quem é que determina se uma pessoa é louca, ou não? Quem nos garante que somos nós, os chamados “normais”? - diz, começando a entusiasmar-se – Quem pode atribuir, a um pobre espírito perdido, um rótulo? Quem se acha no direito de decidir, o caminho que esse espírito deve percorrer?
O quê? - pergunta, surpreendido.
Maria coloca-se ao lado de uma irritada Madalena.
Apresento-te a minha cunhada, Psicóloga Clínica. - diz, abraçando Madalena.
José
Aposto que o teu espírito não estava à espera desta! - diz a rir, para Tomás.
Madalena sai da sala, mas não sem antes ligar e desligar o interruptor, fazendo com que José apanhasse um choque eléctrico.
E aquele era o seu mau feitio, mas esse já tu tiveste o prazer de conhecer ontem. - diz para Tomás, enquanto se ri da cara, literalmente de choque, de José.
Alice desce até à sala, onde estão todos os adultos a terminar as respectivas tarefas.
Então não queres almoçar connosco?
Não. Hoje não posso, obrigado. Tenho que ir para casa. Adeus. - diz, saindo de seguida, não dando tempo para mais perguntas.
Já venho. Não se preocupem comigo.
Deixa a rapariga em paz. - diz para Madalena – A moça não tem nada que tu não tivesses na idade dela, chama-se adolescência. - grita.
Tarde demais. Madalena acaba de bater com a porta da rua.
Nota-se que vocês são irmãos. São ambos um pouco instáveis. - diz, enquanto vai mexendo nos fios eléctricos de um aplique de parede.
Maria impede que José mexa no interruptor.
Mais tarde:
Tomás e José estão deitados ao sol, no quintal, tentando secar as roupas molhadas que têm no corpo.
Tomás
A mim não precisas de pedir desculpas.
José
Nem eu estava a pensar nisso.
Tomás
Sei que o teu espírito está em paz com o meu.
José
Isso de viver num mundo de fantasias, deve ser porreiro.
Tomás
A semana passada fui a um curso, no qual aprendemos a viajar no tempo e a descobrir as nossas vivências passadas. - diz, sem ligar ao que José disse.
José
Ena!- diz, ficando depois a pensar - Foi para ISSO que me pediste 100€ emprestados?!
Tomás
Nesse curso descobri o porquê desta nossa empatia. Descobri que sempre tivemos ligados, no nosso passado. Como pai e filho, irmãos, primos, amigos, e até, nalguns casos, como marido e mulher.
José
Terias que ser uma mulher muito Boa!
Tomás
Porque é que partes do principio de que a mulher era eu?
Madalena e Maria olham, da janela do quarto de Madalena, para o Quintal, onde José e Tomás estão estendidos.
Maria
Não te dá a ideia que estamos a assistir a um concurso de T-Shirts molhadas? - diz, com um sorriso malicioso.
Madalena
É verdade. - diz, olhando para o corpo bem formado de Tomás. - Vamos buscar mais um balde de água?
Tocam à campainha. Maria dirige-se à porta, seguida por Joana. Ao abrir a porta encontra Alice, de olhos voltados para o chão.
Alice
Bom dia. - diz, timidamente – Vim cedo demais? Posso entrar?
Joana
Claro que podes. - diz Joana – Anda comigo.
Alice olha para Maria à espera de autorização. Maria sorri.
Maria
Do que é que estás à espera? Anda. Entra.
Alice sente um enorme alívio a percorrer o seu corpo. Sorri e entra, seguindo Joana. Maria fecha a porta e segue com o olhar as duas crianças, enquanto estas sobem as escadas, em direcção ao quarto de Joana. A descer as escadas vem José que, quando vê Maria pára.
Maria
Então? Já falaste com a tua irmã?
José
Sim. Já está tudo resolvido. É como se nada tivesse acontecido. Aliás, ela própria disse que tudo tinha sido completamente esquecido e apagado da sua memória. - diz, com convicção – E que não vale a pena falar mais nisso.
Madalena
NUNCA DISSE TAL COISA! - grita do seu quarto.
José
Ok. Eu mereço. - diz, resignado – Podes começar. - diz, sentando-se nas escadas, pronto para o “sermão”.
Maria
Tomás! - grita – Traz o balde com água.
No quarto de Madalena:
Maria
Posso? - diz, espreitando pelo porta do quarto.
Madalena está a tirar as suas roupas, das gavetas, armários e roupeiro, e a colocá-las em malas, enquanto vai fungando. Maria entra e coloca-se ao seu lado, tentando não atrapalhar o trabalho de Madalena.
Maria
Sabes que aquilo não foi sentido, não sabes? Aquilo foi uma baboseira que ele disse, e que de certeza já está arrependido.
Como resposta recebe apenas mais uma fungadela de Madalena. Maria senta-se na cama enquanto vai olhando para Madalena a arrumar as roupas na mala.
Maria
Sabes que eu não te vou deixar partir, não sabes?
Madalena pára e olha para Maria, com os olhos prestes a rebentar em lágrimas.
Maria
Só estou a dizer isto, para tentar evitar que depois, tenhas mais trabalho a voltar a arrumar a tua roupa nos armários. - diz, com um sorriso.
Madalena começa a chorar e Maria abraça-a
Maria
Vá, não fiques assim. O teu irmão vai pagar bem caro por isto.
Maria olha para ela de frente
Maria
Mulher – diz, decidida – Não te deixes abater por aquele que a partir de hoje se vai chamar José “O Casto”.
Madalena sorri
Madalena
Não sei como é que o consegues aturar.
Maria
Porque tu sabes, tão bem quanto eu, que por debaixo daquela fachada de parvo, está alguém sensível e que se preocupa com as pessoas.
José
Estão a falar de mim? - pergunta com a cabeça sobressaindo da porta do quarto de Madalena.
Maria dirige-se para fora do quarto enquanto José entra.
Maria
Vou ver da Joana, e explicar-lhe a paciência que todos nós temos que ter para aturar o pai dela. -diz, enquanto manda olhares não muito meigos, a José.
José espera que Maria saia e depois, pouco à vontade, começa a olhar em volta. Repara nas malas cheias de roupa.
José
Pensava que já tinhas arrumado as roupas nos armários. - diz, pouco à vontade.
Madalena não reage.
José
Tu sabes que às vezes sou um bocado parvo. Digo coisas sem pensar nas consequências. Devia de ter um sistema qualquer que me desse choques, sempre que faço algo assim. Talvez assim aprendesse.
Madalena dá mais uma fungadela
José
Não dizes nada?- pergunta, cuidadosamente.
Madalena
Quando discordar do que estás a dizer, falo.
José suspira
José
Aquilo que te disse foi estúpido, indecente e sei que te magoei muito. Soube-o no momento em que o acabei de dizer, mas infelizmente, já era tarde.
Madalena
Não me magoaste assim tanto. Apenas.... - diz, terminando com mais uma fungadela.
José
Apenas o quê?
Madalena
Apenas me fizeste encarar a realidade. E a realidade é que estou perdida. Não sei o que fazer à minha vida. Com 33 anos sai de casa dos meus pais, para vir viver com o meu irmão....- diz, terminando a chorar.
José abraça Madalena.
José
Não me faças isso. Nunca sei o que fazer quando uma mulher começa a chorar.....Não te preocupes, eu vou-te ajudar a ires viver para outro lado.....– diz, atrapalhado – .....Não era bem isso que eu queria dizer....Podes ficar aqui a viver para sempre.... (Madalena continua a chorar) Pronto...para sempre não...até tu quiseres.......
José olha directamente nos olhos de Madalena
José
Prometo que te vou ajudar.
Madalena pára de chorar e limpa os olhos, sorrindo devido à atrapalhação sincera de José. José sorri de volta.
José
Nem que eu tenha que pagar a alguém para te fazer feliz, e tu sabes como eu sou forreta. - diz, sorrindo.
Madalena
E tens sempre as palavras certas na ponta da língua – diz, com ironia.
José
Só disse isso para reforçar o quanto te quero ajudar. - diz, atrapalhado.
Madalena
Sim, eu sei. - diz, enquanto dá um beijo a José.
José
Deixa-me ajudar-te a arrumar a tua roupa no armário. - diz, enquanto se dirige às malas de Madalena.
Madalena
Não é preciso. Eu não me vou embora. Prometo. - diz, sorrindo.
José
Eu sei. Mas quero ajudar-te na mesma. - diz, enquanto vai tirando roupa da mala de Madalena e enfiando-a em gavetas e no roupeiro.
Madalena
Deixa isso. Eu arrumo. - diz, com alguma preocupação com o pouco cuidado que José está a ter com a sua roupa – Estás desculpado. Não precisas de fazer mais nada. - termina, tirando das mãos de José uma série de roupa.
José
Mas eu quero ajudar-te. Aliás, podes deixar-me aqui sossegado que eu arrumo tudo sozinho. Prometo que ficas com a roupa e o quarto bem arrumadinho.
Madalena
Se fosse para fazer as coisas como deve ser, isso implicava ficares aqui o dia inteiro.
José
Exactamente. E até tranco a porta para ficar sossegado.
Madalena
E assim não tinhas que encarar a Maria, certo? - diz, rindo.
José
Mas ficavas com tudo arrumadinho e, com alguma sorte, ela esquecia-se do que se passou.
Madalena
Tens medo da tua mulher? - diz, provocando-o.
José
Medo? Claro que não. Fico é preocupado com a nossa filha. Não é bom para ela ver a mãe irritada com o seu pai.
Madalena
Pois! Sê homem e vai enfrentar as tuas asneiras. - diz, enquanto o empurra para fora do quarto.
Maria
O que é que se passou aqui? - pergunta ofegante.
Joana
Ui ui... Ainda bem que não fui eu. - diz, enquanto olha para o chão.
Tomás
O teu marido beijou-me. – diz, enquanto esfrega a zona da cara onde José o beijou.
José
Mas o que estás a fazer aqui, na minha casa? – diz, irritado.
Tomás
Não mudes de assunto. Não quero mal entendidos com a tua mulher. Por que é que me deste um beijo?
José
O que raio estás a fazer na minha casa? – diz, ainda mais irritado.
Madalena
Por favor – diz, entre gargalhadas – Contem-me depressa o que se passou, pois tenho a certeza que vou adorar.
José
Foi tudo um engano. Um estúpido engano. - diz, irritado.
Tomás
Olha que foi um beijo demasiado carinhoso para ser um simples engano.
José
Deixa de ser parvo. O que raio estás aqui a fazer? Como é que entraste? - pergunta, irritado, a Tomás.
Madalena
Maninho, não tentes mudar de assunto e conta-me a história, por favor. - diz, divertida.
José
Não há história nenhuma. – diz, irritado – Apenas um engano em relação a quem eu julgava estar a dar um beijo.
Maria abana a cabeça e vai buscar um balde e uma esfregona. Joana segue-a.
Joana
Vais pôr o pai de castigo?
Maria
Não é preciso. - diz a rir – A tia Madalena já está a fazer isso por mim.
Quando regressam, Madalena praticamente rebola no chão a rir, enquanto Tomás e José contam a sua versão do que se terá passado.
José
Mas o que é que estavas aqui a fazer? - diz, continuando irritado, principalmente com as gargalhadas de Madalena.
Tomás
Acordei cedo e aproveitei para começar a trabalhar.
José
A trabalhar??? - diz, enquanto aponta para o chão, cheio de restos do “banquete” que Tomás estava a fazer na poltrona preferida de José.
Tomás
Não ia começar de estômago vazio! E não queria acordar ninguém. Ia fazer-vos o pequeno almoço. Queria fazer uma surpresa.
Madalena
Que querido. - deixa escapar, no meio do seu riso.
José
Mas como é que tu entraste? – diz, ainda irritado.
Tomás
A tua mulher deu-me uma cópia das chaves de casa para que eu me sentisse aqui sempre bem vindo.
José olha para Maria com olhares acusadores
Maria
Dei-lhe as chaves para o caso de alguma eventualidade, termos num sítio seguro uma cópia das mesmas.
José
E por que razão não as deste à minha irmã? - pergunta, ao mesmo tempo que se volta irado para a irmã, por esta ainda não ter parado de rir. - Sitio mais seguro não há. Nela já ninguém toca.
Madalena pára de rir, olha para José desiludida e sai, magoada. Maria olha para José, irritada.
Joana
Vou lavar os dentes. - diz, saindo da sala.
Maria
É a tua irmã e foste tu que a convidaste e vir morar connosco. Toma a esfregona. Quero isto tudo muito bem limpo, pois eu vou ter que limpar algo bem mais sujo que tu fizeste. - diz, saindo atrás de Madalena.
Tomás vendo o ambiente tenso, tenta sair discretamente.
José
Nem penses! Quero esta merda bem limpa, e tu vais-me ajudar. - diz, enquanto passa a esfregona a Tomás e agarra no balde cheio de água. Por dentro continua irritado, mas agora, apenas e só consigo.
Tomás
Está bem. Eu ajudo. Desde que no fim não me dês nenhum beijo como sinal de agradecimento.
José não resiste e despeja toda a água do balde para cima de Tomás. Embora continue irritado consigo, sente algum alivio e sorri.
José desce as escadas e, por entre caixotes vazios, dirige-se à cozinha. Ensonado, abre a porta do frigorífico mas não encontra nada. Abre armários, caixas, mas mais uma vez, nada que lhe agrade. Repara entretanto, num ligeiro murmúrio que vem da sala. Dirige-se para lá e nota que a televisão está ligada e um adulto está sentado numa das poltronas, de costas para si.
José sorri enquanto pensa no cuidado que a sua irmã teve, em descer para a sala e estar agora ali sossegada a comer algo, vendo televisão com o volume no mínimo, tentando não acordar ninguém...Pensa na coragem que ela teve em aceitar o seu desafio e vir morar com eles. Recua até à infância comum e imagens de harmonia surgem no seu cérebro. Uma certa nostalgia invade José e com ela uma ideia e um sorriso.
Pé ante pé, dirige-se devagarinho, para a poltrona, tentando colocar-se estrategicamente numa posição ideal para a assustar. Quase que não consegue resistir ao riso, mas controla-se, tal como quando era criança, e este era um dos seus passatempos preferidos. Haverá melhor forma de lhe dar as boas vindas a esta nova vida? Mas ia fazer as coisas como deve de ser. Não ia gritar, isso era demasiado imaturo, ou talvez não o fosse….Mas era melhor não, pois iria acordar os outros. Um beijo! Era isso, iria surpreendê-la com um beijo carinhoso!
Quando acha que já está em posição, ataca rápido como um raio….Talvez demasiado rápido! Sente que algo não está certo, no momento em que, instintivamente, fecha os olhos para dar o beijo. Uma estranha imagem surge... e não é uma imagem agradável para José! Mas ele não consegue parar o seu corpo, que segue em direcção ao alvo!! A sua aflição aumenta no momento em que os seus lábios tocam na face... em vez de uma pele macia e suave, sente algo de áspero que lhe pica os lábios. Reabre rapidamente os olhos, ao mesmo tempo que a pessoa beijada salta do sofá e grita, enquanto assume uma posição defensiva. O pânico invade José e começa também a gritar.
José olha para Tomás. Tomás olha para José. No chão da sala jazem agora bocados de um copo e de uma tigela, acompanhados por leite derramado, restos de fiambre, um prato de plástico junto do qual, mais pedaços de vidro, de um frasco de doce, repousam. Durante uns segundos, silêncio total. Apenas se ouvem os pingos de leite, que continuam a cair da poltrona para o chão. Depois, ouve-se o barulho de pessoas a descerem apressadamente as escadas em direcção à sala.