Quarto de José e Maria. Luzes apagadas, escuridão total.
Ouve-se um suspiro, depois o silêncio volta. Outro suspiro seguido de silêncio. Surge um terceiro suspiro, forçado e num tom mais elevado.
José
Porra, para que foi esse beliscão? - pergunta irritado.
Maria
Para ver se afinal sempre tens alguma sensibilidade. Estava com dúvidas. - diz, com ironia.
José
Porra! Aleijaste-me! Afinal o que se passa?
Maria
Não sei....- diz, ficando à espera da reacção de José, vendo que este continuava calado e a esfregar o braço, continuou – Mas, tanta coisa hoje: as mudanças, a Alice, o Tomás e a Madalena. Comecei a ficar com medo.
José
Medo?! Medo do quê?
Maria
Parece que estamos a começar tudo de novo. E isso assusta-me.
José
Assustada!? Tu que odeias rotinas?!
Maria
Foi muita coisa ao mesmo tempo. E sinceramente, a reacção da Alice, angustiou-me muito.
José
Já falámos sobre isso. A moça deve lá ter os seus problemas, mas o mais certo é não ser nada de especial. Aquilo é o início da adolescência. Devias de saber isso melhor que ninguém, afinal dás aulas a miúdos da idade dela.
Maria
Por isso mesmo. Aquilo não foi uma reacção normal. Vi algo de assustador nos olhos dela.
José
Não comeces a fazer disso uma novela. Cá para mim a moça tinha encontro marcado com o namorado, e por isso queria sair sozinha.
José
Não fiques assim mulher. É de noite, estamos todos cansados, a casa está toda desarrumada e é normal que tudo isso te deixe angustiada. Amanhã é um novo dia. Vais ver como vais acordar melhor.
Maria
Sim. Talvez tenhas razão.
José
Claro que tenho razão. - e, sentido-se encorajado pelas palavras de Maria – Podíamos estrear o quarto novo! Que dizes?! - pergunta enquanto a vai acariciando com as suas mãos.
Maria
Sinceramente, o toque de pensos rápidos no meu corpo não é algo que me excite. - diz, sorrindo.
José
É o resultado de um dia árduo de trabalho! - diz, puxando Maria para si – O qual, tem que ter as suas recompensas. - termina beijando-a.
Os beijos continuam e José aproveita e fecha a luz. Surgem agora outros tipos de suspiros.
De repente um barulho e um grito. José abre a luz e ambos olham em redor. As tábuas da cama não aguentaram e estão agora em cima de um colchão que repousa no chão do quarto.
Maria
Porque é que não deixaste o Tomás montar a nossa cama? - diz, irritada.
José
Porque esta é a nossa cama. Porra, não ia deixar o gajo tocar no nosso leito de amor! - diz, ofendido.
Maria
Amor. - começa, agarrando na cara de José e forçando-o a olhar para os seus olhos – Amanhã pedes ao Tomás para vir montar a nossa cama, e aí de ti que penses em montar sozinho os candeeiros de tecto, ou os apliques de parede.
José
Mas eu gosto de fazer esse tipo de trabalho. - diz, triste.
Maria
Mas já todos nós sabemos, que as tuas mãos são TOTALMENTE desajeitadas, para tudo o que envolve perícia manual. - diz, carinhosamente.
Madalena entra no quarto de Joana. Joana está divertida a saltar em cima da cama.
Madalena
Joana, o que estás a fazer? - ralha – Já devias de estar deitada à minha espera.
Joana
Só queria ter a certeza que a cama está bem montada. - diz, envergonhada.
Madalena
Como não foi o teu pai a montá-la, penso que estás segura. - diz, sorrindo – Mas só para ter a certeza, dá lá mais um salto.
Joana obedece, divertida.
Madalena
Ok. Agora toca a deitar. Nem te pergunto se já lavaste os dentes. - diz a sorrir – Queres que te conte primeiro a história e depois falamos?
Joana
Como eu posso adormecer enquanto tu me contas a história, é melhor primeiro falarmos.
Madalena
Que sobrinha esperta eu tenho. - diz, mostrando alguma desilusão com a resposta que Joana lhe deu. - Então o que é que queres saber?
Joana
Porque é que a Alice estava triste?
Madalena
Aí está algo que a tua tia vai ter que saber. Mas para já, nenhum de nós sabe. Ela não te contou nada durante as vossas brincadeiras?
Joana
Não. Só me disse que não se importava de brincar comigo todos os dias.
Madalena
Perguntaste-lhe por que é que ela disse isso?
Joana
Não. Eu também, se fosse a ela, não me importava de brincar comigo todos os dias. - responde decidida.
Madalena
Pois claro. Poderia lá haver outras razões? - diz, enquanto pensa que está na altura da sobrinha ter um irmão de forma a ficar menos egocêntrica – Mas não te preocupes com a Alice. Não deve ser nada de especial....e seja lá o que for a tua tia vai saber. Por isso, amanhã diverte-te com ela e não lhe fales nisso. E agora vamos à história. - diz, enquanto agarra num livro e o abre.
Joana
O que é uma depressão?
Madalena suspira e fecha o livro.
Madalena
É quando as pessoas passam muito tempo tristes.
Joana
E tu ficaste assim por causa de um homem? Não percebo.
Madalena
Para ti isso é esquisito, não é? Acontece que esse homem era muito especial para mim. Fazia-me sentir bem, feliz. Fazia-me rir.
Joana
Fazia-te muitas cócegas?
Madalena ri-se
Madalena
Também. Mas fazia mais coisas. E um dia disse que já não podia estar comigo, e por isso fiquei muito tempo triste.
Joana
E porque é que ele já não podia estar contigo?
Madalena
Porque....bom, porque ele tinha outra mulher e decidiu viver só com ela.
Joana
Tinha outra mulher?
Madalena
Sim.
Joana
E isso fazia-te rir? - pergunta, desconfiada.
Madalena
Ahhh...bom....Não! Isso nunca me fez rir. - responde atrapalhada.
Joana
E ele vivia contigo?
Madalena
Não. Vivia com a outra mulher. Mas estava sempre a dizer que ia viver comigo.
Joana
Mas como é que ele te fazia feliz? - diz, sem perceber muito bem as explicações da tia.
Madalena
Ó amor... são coisas complicadas para a tua idade.
Joana
Se calhar ele fazia-te cócegas muito boas. - diz, tentando ajudar a tia.
Madalena
Como é que te hei-de explicar?......Ele fazia a tia sentir-se especial.
Joana
Como se fosses a segunda mulher dele? - pergunta ingenuamente.
Madalena suspira e faz uma pausa, enquanto um pequeno sorriso se vai formando na sua cara.
Madalena
Pois... vendo as coisas assim... É um bocado esquisito, não é? Se soubesse tinha vindo falar contigo, em vez de gastar carradas de dinheiro em psiquiatras e medicamentos. - diz, enquanto dá um beijo a Joana e abre o livro das histórias – Mas agora isso já passou e a tua tia já começou uma nova vida. Por isso, agora vamos à história.
Joana
Posso só fazer mais uma pergunta?
Madalena
Se não for complicada....
Joana
Como é que a Sida passa de um homem para uma mulher?
Após uns segundo de silêncio:
Maria
Joana, vai lavar os dentes. - ordena.
Joana
É sempre o mesmo. - diz, chateada – Sempre que querem falar sozinhos, mandam-me lavar os dentes. Eu já sou grande. Posso ouvir as vossas conversas.
Todos olham para ela e sorriem de forma condescendente. Joana fica mais irritada e tenta reforçar a sua posição
Joana
Eu até já sei que a tia Madalena está a viver connosco por causa de um homem. - diz, decidida.
Maria
Joana! Quem te manda andar a ouvir conversas que não te dizem respeito?
Joana
Se eu fosse lavar os dentes sempre que vocês me mandam, já os tinha todos gastos. - diz, tentando desculpar-se perante a mãe.
José
Filha, há conversas que os adultos têm que são tão chatas, mas tão chatas, que se as crianças as ouvirem ficam cheias de sono, e têm que ir logo para a cama. E nós sabemos como tu gostas de dormir. - diz, com ironia.
Joana
É verdade que são chatas. Ainda não percebi como é que um homem pode fazer a tia ficar com uma depressão.
José
Ok. Já chega. Fazemos o seguinte: depois de lavares os dentes, podes ir logo para a sala ver desenhos animados com o volume alto. Pode ser?
Joana
Pode. - diz satisfeita.
Joana sai da cozinha, mas volta logo atrás e dirige-se a Madalena.
Joana
Tia, a depressão é uma doença que os homens nos pegam? É como a SIDA?
Maria
Joana! Andas a ver TV a mais. Quando fores para a cama falamos. - diz, num tom ameaçador.
Madalena
Deixa. - diz para Maria – Hoje sou eu que a deito e falo com ela. Pode ser?
Maria abana a cabeça em concordância. Joana sai da cozinha.
Tomás
Então do que vamos falar primeiro? - pergunta divertido- Da reacção da Alice, ou da depressão da Madalena?
José
Não queres ir também lavar os dentes?
Enquanto a conversa se inicia e decorre animada na cozinha, na rua Alice vai caminhando sem destino. Pensa que mais uma vez, estragou tudo! Mais uma vez falou demais! E deixa as lágrimas correrem livremente pela sua cara pálida.
Joana
Amanhã vens outra vez brincar comigo? - pergunta, ansiosa
Alice encolhe os ombros.
Maria
Se calhar os pais da Alice também querem estar com ela!
Alice
Eles não se importam. Desde que eu não os chateie muito, está tudo bem. - responde, baixando instintivamente a cabeça.
Maria
Não me pareces uma rapariga que chateie os pais. - diz, algo indignada.
Alice
Não era isso que eu queria dizer. - diz, atrapalhada – O que eu queria dizer era que eles não se importam....Eles confiam em mim.
José
Então e tens irmãos? - pergunta, tentando mudar de assunto.
Alice
Não. - diz, após uma ligeira hesitação, que não passou despercebida a ninguém.
Maria
Bom. Se tu nos quiseres vir visitar amanhã, e não houver problemas com os teus pais, aparece quando quiseres.
Alice
Está bem. - diz, animada.
José
Então anda, que eu levo-te a casa. - diz, enquanto se levanta da mesa.
Tomás
Sim, e eu vou começar a montar as camas.
Madalena
Se a Maria não se importar de arrumar a cozinha sozinha, eu vou ajudar o Tomás enquanto o José vai e vem. - diz, olhando suplicante para Maria.
Levantam-se todos da mesa, sem repararem na cara de pânico de Alice.
Alice
Não preciso que me vão levar. Eu vou sozinha. Não é longe. - diz, com algum desespero na voz.
Maria
A tua casa é aqui no bairro? - pergunta a Alice
Alice
Não, mas não é longe. - diz, tentando parecer despreocupada.
José
Deixa-te de porras Alice – diz em tom de brincadeira – Eu levo-te sem problemas. Assim pode ser que quando eu cá chegar já tenha as camas todas montadas. - termina, piscando o olho a Alice.
Alice
Não é preciso. A sério. Os meus pais podem pensar que vos dei trabalho, e depois não me deixam vir amanhã.
José
Não te preocupes. Eu falo com eles e combinamos tudo.
Alice
Não! Por favor! Eu vou sozinha! Deixem-me ir sozinha, por favor! - diz, entre soluços.
Todos são apanhados de surpresa e ficam a olhar para Alice. Maria é quem reage primeiro.
Maria
Mas passa-se alguma coisa? O que é mocita? - pergunta carinhosamente.
Alice
Não. Nada. Apenas quero ir sozinha para casa. - diz, tentando recompor-se.
José
Ok. Está tudo bem moça. Se queres ir sozinha, vais sozinha e não se fala mais nisso. - diz, num tom descontraído, tentando aliviar o ambiente.
Alice
Peço desculpas. Mas eu ando cansada. É só isso. - diz, envergonhada.
Maria
Está bem. - diz, enquanto passa a sua mão pelos cabelos de Alice – Já passou.
Tomás
Vais sozinha e está decidido. E aí de alguém que te queira seguir. - diz, a rir.
Madalena olha para Tomás com um olhar carregado, pois este acabou de lhe estragar os seus planos, de seguir a misteriosa Alice.
Alice despede-se mais uma vez e vai-se embora.
Maria
José, ainda vais demorar muito? -grita.
Como resposta ouve-se algo a cair no chão, seguido de um palavrão.
Madalena
Sim. Vai! Vamos mas é começar a comer. - diz, começando a servir a comida a Joana e a Alice.
Surge José, com mais uns dedos envolvidos em pedaços de pano.
Maria
Amor, deixa isso. Come, e depois do jantar tentas outra vez. - diz, tentando confortá-lo.
Madalena
Sim, deixa as tábuas tranquilas durante um tempo (diz, num tom de conforto) para que possam digerir calmamente os pedaços de carne que te arrancaram dos dedos - termina, rindo.
Alice e Maria riem-se enquanto José, frustrado se senta e se começa a servir.
Joana
Não ligues a elas pai! Eu depois do jantar vou-te ajudar. - diz, enquanto põe uma garfada de comida na boca - Também posso dizer asneiras sempre que tu te aleijares?
Maria lança olhares de acusação a José.
José
Então Alice, andas na Escola? - diz, tentando desviar o assunto.
Madalena
Deixa a moça comer em paz.
José
Poças! Só estava a tentar fazer conversa!
Maria
Nós já sabemos onde é que essas perguntas vão acabar!
José
Vocês também exageram. - diz, indignado - Eu só lhe ia perguntar por possíveis namorados, no fim do jantar.
Alice
Não faz mal. Eu também não ia responder.
Tomás
Ena! Que bem que cheira por aqui. - diz, assim que entra na cozinha.
José
Porque será que não acho estranho tu apareceres, exactamente na hora do jantar? O que queres?
Tomás
Ser um bom vizinho. Só vim ver como é que as coisas andam e dar uma ajudinha.
José
Obrigado, mas já está tudo descarregado e agora, para as arrumações, não precisamos de ti.
Ouve-se mais uma série de tábuas a cair no chão, no andar de cima. José leva as mãos à cabeça desesperado pelo “timing” das tábuas.
Maria
Tomás, vai buscar um prato, senta-te e serve-te, mas com uma condição.
José
Não!!! Não quero ajuda! Eu sou capaz sozinho!
Ouve-se um ligeiro ruído, de um bocado de madeira, a rebolar no andar superior.
José
Fodddd - diz, desesperado, terminado a palavra em surdina.
Maria
Como eu estava a dizer. A única coisa que te peço, é que depois do jantar vás ajudar o José a montar as camas.
Tomás
Está combinado. - diz, enquanto se vai servindo e se acomoda, tentando não ficar muito próximo de Madalena - E por falar em combinações. - diz, dirigindo-se a José - Estive a pensar, uma vez que agora somos vizinhos e trabalhamos no mesmo sítio, podíamos começar a partilhar o transporte. Esta semana levo-te eu e para a semana, levas-me tu. Que dizes?
José
Não me apetece ir a semana toda a pé para o emprego. - diz, mal humorado.
Tomás
Deixa-te disso. A Miquelina pode ser velhinha mas ainda aguenta com nós os dois.
Tomás
É um projecto em formação. - diz, com algum orgulho.
José desata às gargalhadas.
José
Essa foi a melhor descrição que já deste do bicho. - diz, rindo.
Joana
É um bicho? - pergunta, entusiasmada.
José
Não filha. Embora, por vezes, parece que tem coisas orgânicas, a sair de dentro dela. - diz, fazendo caretas de enjoo.
Madalena
Mas afinal quem é, ou o que é, a Miquelina?
Tomás
É uma mota feita por mim.
Tomás
Sim. A base é uma Famel de 1974, mas com o tempo tenho-lhe feito umas melhorias. - diz, orgulhoso.
José
Melhorias? - diz a rir - Sempre que a ligas dá a sensação que grita, para que alguém acabe com o seu sofrimento.
Maria
Não sejas assim. - diz a José, voltando-se depois para Tomás - Pelo que tenho ouvido, daqui do teu amigo - diz, apontando para José - tens tido muito trabalho para que a Miquelina funcione de forma ecológica.
José
É verdade. Ainda a semana passada apanhou duas multas por isso. Uma pelo excesso de ruído e outra pelos resíduos que o bicho vai deixando pelo caminho.....Para não falar nos resíduos que deixa, em quem anda nela!
Tomás
Duas multas muito injustas. A buzina avariou a meio do caminho e não consegui fazer com que ela parasse de apitar. Tentei explicar isso ao policia, mas como não consegui deixar de rir, com a situação, o policia julgou que eu estava a gozar com ele e multou-me.
Madalena
Então e a multa dos resíduos?
Tomás
Bom, com essa senti-me ofendido, pois todos os resíduos que são libertados pela Miquelina resultam da combustão de um combustivel 100% ecológico, feito por mim - diz, orgulhoso - e totalmente biodegradável.
José
Talvez o policia se estivesse a referir às peças que teimam em ir caindo pelo caminho. - diz, gozando - Se realmente queres que eu ande na Miquelina uma semana contigo, tens que te esforçar muito para me convenceres.
Tomás
Durante uma semana inteira, prometo que só me vês no trabalho.
José
Ok. Está combinado. Segunda-feira às oito e um quarto estou à porta da tua casa.
Maria vai até ao quintal, onde Joana e Alice se encontram a brincar com caixotes de papelão vazios. Nenhuma delas se apercebe da chegada de Maria.
Joana
Senhora Dona Alice, olhe que temos que nos despachar para irmos ao cabeleireiro. Repare neste meu aspecto. Pareço mesmo a tia Madalena. - diz, para Alice.
Maria
Andas a ver novelas a mais. - diz, para Joana.
Maria
Alice, tens a certeza que os teus pais não se importam que tu jantes connosco? Eles nem nos conhecem! Podem ficar preocupados. Não me queres dar o número de telemóvel de um deles, para os descansar?
Alice
Não é preciso. - diz, atrapalhada e ficando com as faces vermelhas - Eu já lhes telefonei com o meu telemóvel, e expliquei tudo - tira do bolso algo que parece um telemóvel, mostra-o rapidamente a Maria e volta a colocá-lo no bolso - Eles confiam em mim. Está tudo bem.
Maria
E não queres que eu fale com eles? - insiste.
Alice
Não. Só me pediram que depois do jantar fosse logo para casa.
Joana
Depois do jantar posso ir contigo ver onde é a tua casa? - pergunta a Alice.
Alice
Não! - responde rapidamente - Depois é muito tarde, os meus pais estão cansados e não vão querer visitas. - diz depois, de uma forma mais calma.
Maria
E os teus pais trabalham no quê? - pergunta, intrigada.
Alice
São...médicos. - diz hesitante - E hoje calhou estarem os dois de serviço.
Maria
Bom. Está bem. - diz, não convencida com a conversa - Sendo assim, toca a ir para dentro lavar as mãos e sentar à mesa.
Maria volta para dentro de casa. Joana e Alice olham uma para a outra. Joana repara que algo de estranho se passa nos olhos de Alice.
Alice
Nada. Vamos arrumar isto e vamos comer. - diz, enquanto começa a agarrar em vários brinquedos espalhados pelo chão do quintal.
Joana
Espera. Em primeiro temos que desmarcar a nossa ida ao cabeleireiro. - reage, assumindo novamente a sua personagem da brincadeira - Dá-me o telemóvel que eu falo. Ele não vai gostar nada disto. - diz, enquanto tira o telemóvel do bolso de Joana, fingindo depois marcar números e falar com alguém, com o telemóvel de brincar.
Maria
Aquela Alice, parece boa moça, mas.... - deixa pendurada a frase.
Maria
Nada. Deixa.
Maria olha para o quintal, onde Alice ajuda Joana a arrumar os brinquedos. Tenta pensar em possíveis explicações para a mentira e atrapalhação de Alice.
Maria
Mostrar-me o telemóvel de brincar da minha filha, como se fosse o dela?! - diz, baixinho.
Maria
Nada! Embora chamar o José. Será que ele já acabou de montar as camas?
Madalena
Já não o ouço a dizer asneiras, há uns cinco minutos, pelo que se calhar, já vamos dormir nas nossas camas.
Entretanto chega José à cozinha com vários dedos envolvidos em pedaços de pano.
Maria
O que é que te aconteceu, amor? - diz preocupada.
José
Nada de especial. - diz orgulhoso - apenas fiz o meu trabalho de homem da casa e, graças a mim, todos temos uma cama onde merecidamente podemos repousar do dia de hoje. Foi um trabalho duro, mas compensador.
José levanta a tampa de um tacho para ver o que é o jantar.
José
Mereço por isso comer o resto da piza que sobrou do almoço. - diz, enquanto volta a pôr a tampa no tacho.
Ouve-se um ruído de algo a cair no andar de cima.
Madalena
Se o teu jeito para a bricolage se mantém, aquilo foi uma das camas a desmoronar-se e com ela, a remota possibilidade de comeres outra coisa, que não o belo jantar que eu e a tua mulher preparámos.
Ao almoço:
José
Este almoço foi uma maravilha! - diz, enquanto massaja a barriga.
Joana
Foi pois. Muito bom!
José
Tenho que te dar os parabéns, Madalena. Está mesmo excelente! Agora, que vives connosco, tens que fazer mais disto.
Maria
Amor, o cansaço anda-te a fazer sonhar? - pergunta com ironia
Madalena
Sim. Deixa-te de conversas e arruma os cartões onde as pizzas vinham. Sabes bem que hoje foi uma excepção, dada a confusão que por aqui vai.
José
Está bem. Não precisam de ficarem irritadas. - diz enquanto se levanta e começa a tirar os cartões das pizzas da mesa - Para a próxima sou eu que pago e vou buscar as pizzas.
Maria
Está bem. Na próxima mudança de casa que fizermos, tratas tu disso. Até lá, limitámos-nos à comida saudável, feita pela tua querida mulherinha.
José agarra num pedaço de pizza deixado por Joana e com toda a delicadeza, coloca-o todo na boca, tentando, de olhos fechados, sentir por uma última vez, todos os ingredientes calóricos nele presente.
Enquanto Joana e Alice saem em direcção ao quintal, para continuarem com as suas brincadeiras, Madalena acorda José da sua prova culinária.
Madalena
O que é que se passa com o teu novo vizinho? Não me parece muito normal. - pergunta a José.
Maria
É um bom moço. Tem um coração do tamanho do mundo.
José
É verdade. Maior que o coração dele, só a paciência que eu tenho para o aturar.
Maria
Não sejas assim. Sabes bem que ele não é assim tão mau como o estás a pintar. Quantas vezes já me contaste coisas que ele fez que te deixaram impressionado?
Madalena
Impressionado? Olha que para impressionar o meu irmão, tem que ser algo de muito especial!
José
É verdade que ele, às vezes, me surpreende pela positiva. Mas depois temos os outros 95% do que ele é: Irresponsável, distraído, lunático, etc.. O homem vive num mundo de fantasias, de espíritos, onde tudo tem que ser positivo e tudo tem solução. Infelizmente o mundo não é assim, e essa sua visão, irrita-me!
Madalena
Mas nota-se que ele te admira, mesmo sabendo que tu pensas tudo isso dele. - diz, para José.
José
Aí está a prova de que ele é louco.
Maria
Não digas isso. Ele admira-te por tu seres honesto com ele, e porque ele sabe que também tu, tens uma admiração por ele, mesmo que não o queiras admitir.
José
Bom, tenho mais que fazer do que estar aqui na conversa. Ainda tenho que montar as camas e começar a colocar as luzes nos tectos. - diz, saindo da cozinha.
Madalena
O meu irmão cheio de pressa para ir montar camas?! - diz, admirada, assim que José sai - Afinal talvez o Tomás não seja assim tão mau, como parece. Acho que lhe vou dar uma segunda oportunidade. - diz, olhando para Maria.
Cá fora, enquanto os homens das mudanças continuam a carregar caixotes para dentro de casa, e José agarra noutra televisão, surge junto dele Tomás, o seu novo vizinho.
Tomás aparenta ter a mesma idade que José, tem um rabo de cavalo, é magro, usa roupa clara e larga, e sandálias.
Tomás
Então? Tá'se bem? Querem uma ajuda? - pergunta a José.
Entretanto chega Madalena.
Madalena
Não me tinham dito que iam ter um vizinho assim tão simpático- diz sorrindo para Tomás.
José
Ainda não o conheces! Não o deixes levar os caixotes que têm comida! - diz num tom sério.
Tomás
És um brincalhão. - diz para José - Como está? - diz, dirigindo-se a Madalena - Sou o Tomás, amigo e colega de trabalho, aqui do José.
Madalena
Como é que nós ainda não nos tínhamos conhecido? -diz, sorrindo.
José
Não conheces já falhados que chegue? - diz, enquanto põe nos braços de Tomás um caixote e se prepara para dar outro a Madalena.
Madalena
Não ligue ao que ele diz, é só da boca para fora. Eu sou a Madalena e é um prazer conhecê-lo. - diz, ao mesmo tempo que José apressadamente, lhe põe um caixote nos braços.
Tomás
Bom, agora que já nos apresentámos que tal deixarmos isso do você. Afinal, tu pouco mais velha do que eu deves ser. - diz, enquanto os três se dirigem, carregados, para o interior da casa.
Madalena
Ahhhhh…..Pois….Estes fatos de treino realmente tornam-me mais madura. - diz, meio envergonhada.
Tomás
E eu sempre tive um fascínio por mulheres mais velhas do que eu. - diz, com ar de conquistador.
Madalena
Já disse que é do fato de treino...e talvez do cabelo por arranjar. - diz, um pouco irritada.
José
Como é que tu consegues conquistar mulheres, sem pagar? - diz a Tomás.
Tomás
O que te vale é que eu a ti perdoo-te tudo. - diz a José- Sabias que foi graças a ele que somos vizinhos? - pergunta a Madalena - Bom...a ele não. À Maria. Foi ela que me falou do belo negócio que iam fazer, com a compra desta casa, e me informou que, mesmo ao lado, existia este belo lote que agora é meu. Mas a preocupação deste amigalhaço comoveu-me: “Que era longe do emprego!” “Que era uma casa grande demais para uma só pessoa!” “Que não me queria ver também aos fins de semana!” Como se eu acreditasse nisso! E agora aqui estamos. Prontos para começar a viver uma nova etapa da nossa vida. Juntos e felizes. Quem sabe até morrermos! - diz, enquanto se encosta a José.
José, depois de ouvir Tomás, dá meia volta e dirige-se para o carro das mudanças, com um caixote nos braços.
Madalena
José, onde é que vais com os caixotes? Estás parvo ou quê? - grita.
José dá novamente meia volta e entra em casa, dirigindo-se à sala onde está Maria a dar instruções, aos homens das mudanças, sobre o sítio correcto onde devem deixar os móveis.
José
Fica a saber que o facto de ter que aturar este gajo para além do emprego (diz, enquanto aponta para Tomás que está na conversa com Madalena na cozinha) te vai ainda custar muito caro - diz para Maria.
Maria
Deixa de ser implicante! Ele não é assim tão mau! Até a tua irmã ficou interessada nele...
José
Queres melhor argumento que esse?
Maria
Deixa-te disso, e toca mas é a trabalhar! A Joana ainda dorme no carro?
José
Sim. Quanto mais dormir mais podemos trabalhar sossegados.
Ouvem-se barulhos, vindos da cozinha, de coisas a partir. José e Maria dirigem-se para lá a correr.
Madalena
Mais uma piada estúpida dessas, e será com algo mais pesado que levas. - diz, irritada, a Tomás, ameaçando-o com uma saladeira de cristal.
Tomás
Mas que mulher mais sensível! Há quanto tempo não tem um homem? - pergunta a José.
José chega a tempo e evita que Madalena envie a Saladeira, contra Tomás. Madalena sai de seguida da casa.
Tomás
Espero que ela não tenha partido nada de importante…. - diz, olhando para os cacos no chão da cozinha.
José
Não! Trata-se apenas da loiça onde costumávamos comer. É apenas uma questão de passarmos a comer em loiça de plástico! - diz irritado.
Tomás
Porreiro! Agora até nisso vamos ser iguais. - diz, com uma sincera felicidade.
Maria evita que José envie o saladeira, contra Tomás. Agarra depois no braço de Tomás e trá-lo para fora de casa, deixando José a dizer asneiras na cozinha. Maria tenta dissuadir Tomás de continuar a ajudá-los, aí apercebe-se de algo estranho na casa ao lado, na casa de Tomás.
Maria
Tomás, se calhar o melhor é ires ver porque razão está a sair fumo da tua janela, e deixares as arrumações por nossa conta. - diz, apontando para a casa de Tomás.
Tomás
Aquilo não é nada. Trata-se apenas de incenso para purificar a casa.
Maria
Tens a certeza que não andas a cheirar incenso a mais?
Tomás
Bom, talvez seja melhor ir lá tirar uns paus, porque não quero que chamem os bombeiros, outra vez. - diz, após olhar para Madalena, a qual vinha carregada com um bengaleiro.
Maria
Outra vez?! - diz, enquanto Tomás corre para casa.
José junta-se a Maria e a Madalena, e ficam os três, no seu pequeno quintal, a olhar para o fumo negro que sai da casa de Tomás.
Maria, mulher com 32 anos, entra em casa, coloca o seu caixote no chão e olha em volta, feliz.
Maria
Chegámos, finalmente! A nossa casa! A nossa linda casa!
José, seu marido, entra atrás dela, com uma televisão nos braços.
José
Se os gajos do banco te ouvem a dizer essas blasfémias, aumentam-nos os juros.
Maria
Olha lá! Por que raio é que a televisão tem que ser o primeiro electrodoméstico a entrar aqui?!
José
Por ordem de importância, minha cara! Por ordem de importância! Repara que toda a mobília da sala, tem que ser colocada de acordo com o electrodoméstico central.
Maria
E a cozinha? Não é prioritária?
José
É já a seguir! Só posso com uma televisão de cada vez! (queixa-se, enquanto se dirige para a sala)
Entra Madalena, irmã de José.
Madalena
Onde queres que eu ponha isto? (diz a braços com um caixote)
Maria
Deixa aí tudo no chão que eu vou arrumando.
Madalena
O que é que o José está a fazer?
Maria
A ver qual o melhor sítio para a televisão. - diz, terminando com um suspiro.
Ouve-se a televisão a funcionar e um grito de alegria. Maria e Madalena dirigem-se para a sala.
José
Já temos cabo! - diz enquanto vai estudando, com cuidado, qual o melhor sítio para ver a TV.
Maria dá-lhe um beijo.
Maria
Se dentro de 30 segundos não estiveres a descarregar caixas, podes considerar este beijo como o toque mais intimo desta semana.
José
Ok. - diz, enquanto sai rapidamente.
Madalena
Uau! Gostava de ter um homem assim tão obediente....bom, como isto anda, para já contentava-me apenas com um homem...qualquer homem. - diz, triste.
Maria
Deixa-te disso! Agora que vais viver connosco uma temporada, eu vou-te dar umas dicas sobre como dominar os homens. - diz a sorrir e piscando o olho.