Perto da hora de Almoço:
Alice sai do quarto de Joana e dá de caras, no corredor, com Madalena. Madalena corta o caminho de Alice.
Então Alice. Está tudo bem contigo?
Sim. - diz, sem vontade de prolongar a conversa.
É que ontem preocupaste o pessoal. De certeza que está tudo bem?
Sim. Está. - diz, olhando Madalena de frente.
Nós ainda não nos conhecemos bem, mas por estranho que pareça, por vezes é com desconhecidos que nos sentimos melhor a falar.
Não tenho nada para falar. Já disse que está tudo bem.
A tua reacção de ontem não me mostrou isso. Algo se passa contigo.
Não se passa nada. Eu não preciso de ser levada a casa, como se fosse uma criança. Já tenho quase 14 anos. Sei cuidar muito bem de mim e não preciso da ajuda de ninguém. - diz, com um olhar de raiva.
Está bem. Pronto. Não precisas de mostrar todo o teu mau feitio. - diz calmamente e a sorrir – Só ficámos preocupados com a tua reacção, nada mais.
Não têm que ficar preocupados. Só não gosto que me tratem como uma criança. Só isso. - diz, mais calma.
Ok. Vai lá então brincar com as bonecas. - diz, com um sorriso.
Eu não brinco com as bonecas. Eu brinco com a Joana que é a única pessoa que não me faz perguntas sobre coisas que não entende, nem nunca vão entender. - diz, mostrando a Madalena ter percebido a ironia da sua frase.
Está bem. E quando é que nos voltamos a ver?
Na sala, Maria está a arrumar livros nas estantes, enquanto Tomás e José estão em cima de um escadote, a colocar um candeeiro no tecto. Entra Madalena
Que ninguém toque no interruptor da luz, por favor. - diz, enquanto vai mexendo nos fios eléctricos.
Estive a falar com a Alice. Acho-a um pouco instável. - diz, sem destinatário definido.
A Joana já lhe deve ter falado da tua depressão, por isso ela deve pensar o mesmo de ti. Estão quites! - diz, desprezando a preocupação de Madalena.
Estou a falar a sério. Afinal é algo que eu conheço bem...
Eu não acho que tu sejas assim tããoo instável. - diz, descendo do escadote e aproximando-se de Madalena.
Claro que não sou. - diz, começando a mostrar alguma irritação – O que eu quero dizer é que isso é algo da minha área.
É verdade. Ela esteve muito tempo em instituições de saúde mental. - diz, para Tomás.
Bom. Isso explica muita coisa. Mas tens a minha total compreensão. Para mim as pessoas não têm rótulos. Quem é que determina se uma pessoa é louca, ou não? Quem nos garante que somos nós, os chamados “normais”? - diz, começando a entusiasmar-se – Quem pode atribuir, a um pobre espírito perdido, um rótulo? Quem se acha no direito de decidir, o caminho que esse espírito deve percorrer?
O quê? - pergunta, surpreendido.
Maria coloca-se ao lado de uma irritada Madalena.
Apresento-te a minha cunhada, Psicóloga Clínica. - diz, abraçando Madalena.
José
Aposto que o teu espírito não estava à espera desta! - diz a rir, para Tomás.
Madalena sai da sala, mas não sem antes ligar e desligar o interruptor, fazendo com que José apanhasse um choque eléctrico.
E aquele era o seu mau feitio, mas esse já tu tiveste o prazer de conhecer ontem. - diz para Tomás, enquanto se ri da cara, literalmente de choque, de José.
Alice desce até à sala, onde estão todos os adultos a terminar as respectivas tarefas.
Então não queres almoçar connosco?
Não. Hoje não posso, obrigado. Tenho que ir para casa. Adeus. - diz, saindo de seguida, não dando tempo para mais perguntas.
Já venho. Não se preocupem comigo.
Deixa a rapariga em paz. - diz para Madalena – A moça não tem nada que tu não tivesses na idade dela, chama-se adolescência. - grita.
Tarde demais. Madalena acaba de bater com a porta da rua.
Nota-se que vocês são irmãos. São ambos um pouco instáveis. - diz, enquanto vai mexendo nos fios eléctricos de um aplique de parede.
Maria impede que José mexa no interruptor.
Mais tarde:
Tomás e José estão deitados ao sol, no quintal, tentando secar as roupas molhadas que têm no corpo.
Tomás
A mim não precisas de pedir desculpas.
José
Nem eu estava a pensar nisso.
Tomás
Sei que o teu espírito está em paz com o meu.
José
Isso de viver num mundo de fantasias, deve ser porreiro.
Tomás
A semana passada fui a um curso, no qual aprendemos a viajar no tempo e a descobrir as nossas vivências passadas. - diz, sem ligar ao que José disse.
José
Ena!- diz, ficando depois a pensar - Foi para ISSO que me pediste 100€ emprestados?!
Tomás
Nesse curso descobri o porquê desta nossa empatia. Descobri que sempre tivemos ligados, no nosso passado. Como pai e filho, irmãos, primos, amigos, e até, nalguns casos, como marido e mulher.
José
Terias que ser uma mulher muito Boa!
Tomás
Porque é que partes do principio de que a mulher era eu?
Madalena e Maria olham, da janela do quarto de Madalena, para o Quintal, onde José e Tomás estão estendidos.
Maria
Não te dá a ideia que estamos a assistir a um concurso de T-Shirts molhadas? - diz, com um sorriso malicioso.
Madalena
É verdade. - diz, olhando para o corpo bem formado de Tomás. - Vamos buscar mais um balde de água?
Tocam à campainha. Maria dirige-se à porta, seguida por Joana. Ao abrir a porta encontra Alice, de olhos voltados para o chão.
Alice
Bom dia. - diz, timidamente – Vim cedo demais? Posso entrar?
Joana
Claro que podes. - diz Joana – Anda comigo.
Alice olha para Maria à espera de autorização. Maria sorri.
Maria
Do que é que estás à espera? Anda. Entra.
Alice sente um enorme alívio a percorrer o seu corpo. Sorri e entra, seguindo Joana. Maria fecha a porta e segue com o olhar as duas crianças, enquanto estas sobem as escadas, em direcção ao quarto de Joana. A descer as escadas vem José que, quando vê Maria pára.
Maria
Então? Já falaste com a tua irmã?
José
Sim. Já está tudo resolvido. É como se nada tivesse acontecido. Aliás, ela própria disse que tudo tinha sido completamente esquecido e apagado da sua memória. - diz, com convicção – E que não vale a pena falar mais nisso.
Madalena
NUNCA DISSE TAL COISA! - grita do seu quarto.
José
Ok. Eu mereço. - diz, resignado – Podes começar. - diz, sentando-se nas escadas, pronto para o “sermão”.
Maria
Tomás! - grita – Traz o balde com água.
No quarto de Madalena:
Maria
Posso? - diz, espreitando pelo porta do quarto.
Madalena está a tirar as suas roupas, das gavetas, armários e roupeiro, e a colocá-las em malas, enquanto vai fungando. Maria entra e coloca-se ao seu lado, tentando não atrapalhar o trabalho de Madalena.
Maria
Sabes que aquilo não foi sentido, não sabes? Aquilo foi uma baboseira que ele disse, e que de certeza já está arrependido.
Como resposta recebe apenas mais uma fungadela de Madalena. Maria senta-se na cama enquanto vai olhando para Madalena a arrumar as roupas na mala.
Maria
Sabes que eu não te vou deixar partir, não sabes?
Madalena pára e olha para Maria, com os olhos prestes a rebentar em lágrimas.
Maria
Só estou a dizer isto, para tentar evitar que depois, tenhas mais trabalho a voltar a arrumar a tua roupa nos armários. - diz, com um sorriso.
Madalena começa a chorar e Maria abraça-a
Maria
Vá, não fiques assim. O teu irmão vai pagar bem caro por isto.
Maria olha para ela de frente
Maria
Mulher – diz, decidida – Não te deixes abater por aquele que a partir de hoje se vai chamar José “O Casto”.
Madalena sorri
Madalena
Não sei como é que o consegues aturar.
Maria
Porque tu sabes, tão bem quanto eu, que por debaixo daquela fachada de parvo, está alguém sensível e que se preocupa com as pessoas.
José
Estão a falar de mim? - pergunta com a cabeça sobressaindo da porta do quarto de Madalena.
Maria dirige-se para fora do quarto enquanto José entra.
Maria
Vou ver da Joana, e explicar-lhe a paciência que todos nós temos que ter para aturar o pai dela. -diz, enquanto manda olhares não muito meigos, a José.
José espera que Maria saia e depois, pouco à vontade, começa a olhar em volta. Repara nas malas cheias de roupa.
José
Pensava que já tinhas arrumado as roupas nos armários. - diz, pouco à vontade.
Madalena não reage.
José
Tu sabes que às vezes sou um bocado parvo. Digo coisas sem pensar nas consequências. Devia de ter um sistema qualquer que me desse choques, sempre que faço algo assim. Talvez assim aprendesse.
Madalena dá mais uma fungadela
José
Não dizes nada?- pergunta, cuidadosamente.
Madalena
Quando discordar do que estás a dizer, falo.
José suspira
José
Aquilo que te disse foi estúpido, indecente e sei que te magoei muito. Soube-o no momento em que o acabei de dizer, mas infelizmente, já era tarde.
Madalena
Não me magoaste assim tanto. Apenas.... - diz, terminando com mais uma fungadela.
José
Apenas o quê?
Madalena
Apenas me fizeste encarar a realidade. E a realidade é que estou perdida. Não sei o que fazer à minha vida. Com 33 anos sai de casa dos meus pais, para vir viver com o meu irmão....- diz, terminando a chorar.
José abraça Madalena.
José
Não me faças isso. Nunca sei o que fazer quando uma mulher começa a chorar.....Não te preocupes, eu vou-te ajudar a ires viver para outro lado.....– diz, atrapalhado – .....Não era bem isso que eu queria dizer....Podes ficar aqui a viver para sempre.... (Madalena continua a chorar) Pronto...para sempre não...até tu quiseres.......
José olha directamente nos olhos de Madalena
José
Prometo que te vou ajudar.
Madalena pára de chorar e limpa os olhos, sorrindo devido à atrapalhação sincera de José. José sorri de volta.
José
Nem que eu tenha que pagar a alguém para te fazer feliz, e tu sabes como eu sou forreta. - diz, sorrindo.
Madalena
E tens sempre as palavras certas na ponta da língua – diz, com ironia.
José
Só disse isso para reforçar o quanto te quero ajudar. - diz, atrapalhado.
Madalena
Sim, eu sei. - diz, enquanto dá um beijo a José.
José
Deixa-me ajudar-te a arrumar a tua roupa no armário. - diz, enquanto se dirige às malas de Madalena.
Madalena
Não é preciso. Eu não me vou embora. Prometo. - diz, sorrindo.
José
Eu sei. Mas quero ajudar-te na mesma. - diz, enquanto vai tirando roupa da mala de Madalena e enfiando-a em gavetas e no roupeiro.
Madalena
Deixa isso. Eu arrumo. - diz, com alguma preocupação com o pouco cuidado que José está a ter com a sua roupa – Estás desculpado. Não precisas de fazer mais nada. - termina, tirando das mãos de José uma série de roupa.
José
Mas eu quero ajudar-te. Aliás, podes deixar-me aqui sossegado que eu arrumo tudo sozinho. Prometo que ficas com a roupa e o quarto bem arrumadinho.
Madalena
Se fosse para fazer as coisas como deve ser, isso implicava ficares aqui o dia inteiro.
José
Exactamente. E até tranco a porta para ficar sossegado.
Madalena
E assim não tinhas que encarar a Maria, certo? - diz, rindo.
José
Mas ficavas com tudo arrumadinho e, com alguma sorte, ela esquecia-se do que se passou.
Madalena
Tens medo da tua mulher? - diz, provocando-o.
José
Medo? Claro que não. Fico é preocupado com a nossa filha. Não é bom para ela ver a mãe irritada com o seu pai.
Madalena
Pois! Sê homem e vai enfrentar as tuas asneiras. - diz, enquanto o empurra para fora do quarto.
Maria
O que é que se passou aqui? - pergunta ofegante.
Joana
Ui ui... Ainda bem que não fui eu. - diz, enquanto olha para o chão.
Tomás
O teu marido beijou-me. – diz, enquanto esfrega a zona da cara onde José o beijou.
José
Mas o que estás a fazer aqui, na minha casa? – diz, irritado.
Tomás
Não mudes de assunto. Não quero mal entendidos com a tua mulher. Por que é que me deste um beijo?
José
O que raio estás a fazer na minha casa? – diz, ainda mais irritado.
Madalena
Por favor – diz, entre gargalhadas – Contem-me depressa o que se passou, pois tenho a certeza que vou adorar.
José
Foi tudo um engano. Um estúpido engano. - diz, irritado.
Tomás
Olha que foi um beijo demasiado carinhoso para ser um simples engano.
José
Deixa de ser parvo. O que raio estás aqui a fazer? Como é que entraste? - pergunta, irritado, a Tomás.
Madalena
Maninho, não tentes mudar de assunto e conta-me a história, por favor. - diz, divertida.
José
Não há história nenhuma. – diz, irritado – Apenas um engano em relação a quem eu julgava estar a dar um beijo.
Maria abana a cabeça e vai buscar um balde e uma esfregona. Joana segue-a.
Joana
Vais pôr o pai de castigo?
Maria
Não é preciso. - diz a rir – A tia Madalena já está a fazer isso por mim.
Quando regressam, Madalena praticamente rebola no chão a rir, enquanto Tomás e José contam a sua versão do que se terá passado.
José
Mas o que é que estavas aqui a fazer? - diz, continuando irritado, principalmente com as gargalhadas de Madalena.
Tomás
Acordei cedo e aproveitei para começar a trabalhar.
José
A trabalhar??? - diz, enquanto aponta para o chão, cheio de restos do “banquete” que Tomás estava a fazer na poltrona preferida de José.
Tomás
Não ia começar de estômago vazio! E não queria acordar ninguém. Ia fazer-vos o pequeno almoço. Queria fazer uma surpresa.
Madalena
Que querido. - deixa escapar, no meio do seu riso.
José
Mas como é que tu entraste? – diz, ainda irritado.
Tomás
A tua mulher deu-me uma cópia das chaves de casa para que eu me sentisse aqui sempre bem vindo.
José olha para Maria com olhares acusadores
Maria
Dei-lhe as chaves para o caso de alguma eventualidade, termos num sítio seguro uma cópia das mesmas.
José
E por que razão não as deste à minha irmã? - pergunta, ao mesmo tempo que se volta irado para a irmã, por esta ainda não ter parado de rir. - Sitio mais seguro não há. Nela já ninguém toca.
Madalena pára de rir, olha para José desiludida e sai, magoada. Maria olha para José, irritada.
Joana
Vou lavar os dentes. - diz, saindo da sala.
Maria
É a tua irmã e foste tu que a convidaste e vir morar connosco. Toma a esfregona. Quero isto tudo muito bem limpo, pois eu vou ter que limpar algo bem mais sujo que tu fizeste. - diz, saindo atrás de Madalena.
Tomás vendo o ambiente tenso, tenta sair discretamente.
José
Nem penses! Quero esta merda bem limpa, e tu vais-me ajudar. - diz, enquanto passa a esfregona a Tomás e agarra no balde cheio de água. Por dentro continua irritado, mas agora, apenas e só consigo.
Tomás
Está bem. Eu ajudo. Desde que no fim não me dês nenhum beijo como sinal de agradecimento.
José não resiste e despeja toda a água do balde para cima de Tomás. Embora continue irritado consigo, sente algum alivio e sorri.
José desce as escadas e, por entre caixotes vazios, dirige-se à cozinha. Ensonado, abre a porta do frigorífico mas não encontra nada. Abre armários, caixas, mas mais uma vez, nada que lhe agrade. Repara entretanto, num ligeiro murmúrio que vem da sala. Dirige-se para lá e nota que a televisão está ligada e um adulto está sentado numa das poltronas, de costas para si.
José sorri enquanto pensa no cuidado que a sua irmã teve, em descer para a sala e estar agora ali sossegada a comer algo, vendo televisão com o volume no mínimo, tentando não acordar ninguém...Pensa na coragem que ela teve em aceitar o seu desafio e vir morar com eles. Recua até à infância comum e imagens de harmonia surgem no seu cérebro. Uma certa nostalgia invade José e com ela uma ideia e um sorriso.
Pé ante pé, dirige-se devagarinho, para a poltrona, tentando colocar-se estrategicamente numa posição ideal para a assustar. Quase que não consegue resistir ao riso, mas controla-se, tal como quando era criança, e este era um dos seus passatempos preferidos. Haverá melhor forma de lhe dar as boas vindas a esta nova vida? Mas ia fazer as coisas como deve de ser. Não ia gritar, isso era demasiado imaturo, ou talvez não o fosse….Mas era melhor não, pois iria acordar os outros. Um beijo! Era isso, iria surpreendê-la com um beijo carinhoso!
Quando acha que já está em posição, ataca rápido como um raio….Talvez demasiado rápido! Sente que algo não está certo, no momento em que, instintivamente, fecha os olhos para dar o beijo. Uma estranha imagem surge... e não é uma imagem agradável para José! Mas ele não consegue parar o seu corpo, que segue em direcção ao alvo!! A sua aflição aumenta no momento em que os seus lábios tocam na face... em vez de uma pele macia e suave, sente algo de áspero que lhe pica os lábios. Reabre rapidamente os olhos, ao mesmo tempo que a pessoa beijada salta do sofá e grita, enquanto assume uma posição defensiva. O pânico invade José e começa também a gritar.
José olha para Tomás. Tomás olha para José. No chão da sala jazem agora bocados de um copo e de uma tigela, acompanhados por leite derramado, restos de fiambre, um prato de plástico junto do qual, mais pedaços de vidro, de um frasco de doce, repousam. Durante uns segundos, silêncio total. Apenas se ouvem os pingos de leite, que continuam a cair da poltrona para o chão. Depois, ouve-se o barulho de pessoas a descerem apressadamente as escadas em direcção à sala.