Madalena senta-se na ponta da cama. Alice olha para a parede e encolhe-se, de forma a não tocar em Madalena. Madalena fica à espera que a música acabe enquanto vai olhando para Alice. Vê, no rosto de Alice, a marca que lágrimas recentes deixaram. Vê raiva e desespero nos seus olhos. Mas Madalena, não está preocupada. Sente-se calma...serena. Algo que ela própria acha estranho. Sorri para Alice, agora que sente que a canção está a terminar, e prepara-se para começar a falar, mas antes que o silêncio invada o quarto, Alice preme um botão do seu leitor de MP3 e avança para a próxima música. Mais uma vez, o som de música entra, com o seu volume máximo, dentro da cabeça de Alice. Mas mesmo assim não a impede de pensar. Pensar nas razões que estão por detrás de Madalena estar ali sentada, na sua cama. Por que é que ela não se vai embora? Alice apenas quer estar sozinha, não quer falar. Apetece-lhe dizer que nunca mais vai voltar a casa deles. Que podem estar descansados. Mas sabe que se o fizer, mais lágrimas vão cair, e isso ela não vai deixar acontecer. Madalena não a vai ver a chorar, isso é mais do que certo! Alice já há muito que aprendeu a reter as lágrimas, sempre que não está sozinha.
Madalena toca na perna de Alice, tentando desta forma, que ela desligue a música e a ouça. Alice encolhe-se ainda mais e vira-se totalmente para a parede. Madalena não insiste. Levanta-se, dirige-se à mesa do quarto, agarra num pedaço de papel e num lápis e começa a rabiscar qualquer coisa. Quando termina, dirige-se a Alice e dá-lhe um suave beijo na cabeça. Depois saí do quarto e da casa.
Alice não esperava uma reacção daquelas. Um beijo! Porquê? A música continua a ecoar forte na sua cabeça, mas não suficientemente forte para evitar que uma série de emoções invadam a sua cabeça. Alice desiste. Liberta o doloroso nó que lhe aperta o pescoço e chora. Chora compulsivamente. Não são apenas lágrimas que saem do seu corpo. Há raiva e desespero nos gritos abafados que vêm com o choro. Imagens aleatórias vão surgindo na sua cabeça. Alice coloca ambas as mãos nos ouvidos pressionando-os, tentando assim que a música aumente ainda mais e a faça esquecer tudo, mas nada consegue parar o seu choro, as suas lágrimas, a raiva e o seu desespero...
Finalmente, passados inúmeros minutos, começa a acalmar, coloca-se em posição fetal e, esgotada, acaba por adormecer.
Alice sai da casa de Mariana, comendo uma sandes, e imediatamente se apercebe da presença de Madalena, sentada no meio das velhas. Madalena levanta-se de imediato. Alice dirige-se a Madalena...”Como é que ela se atreveu a segui-la?!” Como a Odeia!
Alice
O que está aqui a fazer? – pergunta irritada.
Velha1
Eu não lhe disse q’esta moça é só fezes?
Madalena fica sem reacção. Alice sente os olhos a encherem-se de lágrimas de raiva, mas não lhe vai dar essa satisfação. Volta-se, e dirige-se para uma das casas, na qual entra. As velhas continuam a falar com Madalena, mas esta não as ouve. Segue em direcção à casa onde Alice entrou, mas dá com a porta fechada. Hesita uns segundos, mas acaba por bater. Nada acontece. Volta a insistir. Finalmente a porta abre-se, e Madalena dá de caras com uma mulher. Uma mulher cuja idade, Madalena, tem dificuldade em detectar. Tem na cara duas enormes covas, no fundo das quais se vêem uns olhos, que lutam para se manterem abertos perante uma luz, à qual, parece que não estão habituados. Tem uns cabelos, que deveriam ser lisos, e que se entrelaçam ao acaso, numa mescla de cabelos brancos e pretos.
Eva
O que deseja? – diz, arrastando a voz
Madalena não consegue evitar uma careta, perante o intenso cheiro a álcool, que sai com as palavras.
Madalena
Peço desculpas. Provavelmente acordei-a. Gostaria de falar com a Alice, se fosse possível.
Assim que Madalena acaba de falar, Eva volta-se, deixando a porta aberta. Segue cambaleando, para uma divisão da pequena casa, na qual, Madalena vislumbra algo que lhe parece uma cama, onde já se encontra deitado uma outra figura. Antes de cair na cama, Eva fecha a porta do quarto, deixando Madalena sozinha, à entrada da casa.
Madalena sente-se num mundo que não lhe é estranho... Um mundo que conhece bem! Só nunca tinha estado, fisicamente, tão dentro dele! Até então, este mundo existia apenas nas histórias de vida, que ouvia dos seus doentes, como Psicóloga do Centro de Saúde Mental dos Hospitais, no de Lisboa e agora no de Beja.
Começa a entrar pela casa, a qual emane um forte cheiro a álcool.
Para além da pequena sala, existe uma cozinha, o quarto onde Eva entrou, e mais duas divisões. Uma será certamente, a casa de banho, a outra, o quarto de Alice. Existe ainda uma outra porta, por onde entra claridade pelas frestas, que dá de certeza, para um pequeno jardim.
Ao olhar para todos os cantos daquela casa, Madalena não consegue deixar de sentir, que ali, há algo de estranho. Existem algumas garrafas de cerveja espelhadas, em cima da mesa da cozinha, mas, tirando isso, tudo parece estar demasiado arrumado! Não era esta a imagem que tinha, de uma casa de toxicodependentes!
O cheiro intenso a álcool vem principalmente, ou exclusivamente, do quarto onde Eva entrou.
Madalena ouve, vindo de umas das divisões desconhecidas, um ligeiro e contínuo ruído. Resolve arriscar e bater levemente na porta.
Madalena
Alice? Posso? – pergunta, baixinho.
Não recebe nenhuma resposta. Volta a insistir, mas mais uma vez, apenas o silêncio. Começa então a abrir, muito devagar, a maçaneta da porta, enquanto vai espreitando. Vê Alice sentada em cima de uma pequena cama, com uns "headphones" nos ouvidos. Tem a música tão alta, que Madalena, agora dentro do quarto, consegue ouvi-la.
Alice finge não a ver. Madalena olha em seu redor. Um quarto com tudo pequeno: a cama, o roupeiro, a mesa, o espelho. Nas paredes não há posters de estrelas da televisão, cinema, ou da música. Há sim imagens, tiradas de revistas, que mostram paisagens e sobretudo animais. Madalena repara no forma perfeita, de como tudo se encontra arrumado. Alice não é, sem dúvida, uma adolescente normal.